Tá na mídia e conteúdos

IA sob fogo cruzado: a guerra regulatória que define o futuro digital do Brasil

27 / 06 / 25

A inteligência artificial brasileira está sitiada. Não por inimigos externos ou limitações tecnológicas, mas por uma batalha regulatória que pode determinar se o país se tornará líder em inovação responsável ou refém de oportunistas que destroem a credibilidade de uma revolução que mal começou.

Enquanto você lê este texto, decisões tomadas em gabinetes de Brasília, escritórios de advocacia e salas do Supremo Tribunal Federal estão moldando o destino de uma tecnologia que já transformou a vida de meio milhão de estudantes paranaenses e promete revolucionar desde a educação básica até os tribunais superiores.

O cenário atual é paradoxal de forma quase cinematográfica.

Goiás aprovou pioneiramente a Lei Complementar 205/25, estabelecendo uma Política Estadual de Fomento à Inteligência Artificial que inclui IA nos currículos escolares e cria centros de computação avançada. Paraná vai além: mais de 500 mil estudantes já usam ferramentas de IA em sala de aula. São marcos de uma nação que entendeu o potencial transformador da tecnologia e decidiu abraçá-la com responsabilidade institucional.

Mas essa mesma semana que celebra avanços educacionais testemunha um escândalo que expõe como a falta de regulamentação pode transformar inovação em predação.

A OAB do Rio de Janeiro descobriu um esquema onde petições jurídicas elaboradas por IA são vendidas por míseros R$ 20 através de um website. O serviço promete criar petições "com legislação correspondente" e "decisões favoráveis de casos similares" para aumentar chances de êxito nos Juizados Especiais.

Não é apenas uma irregularidade profissional; é a mercantilização da justiça reduzida a algoritmos que prometem soluções padronizadas por preços de fast-food.

A gravidade transcende questões corporativas. Essa comercialização predatória simboliza exatamente o que pode acontecer quando tecnologias revolucionárias são abandonadas ao sabor do mercado selvagem. A OAB foi categórica: tais práticas "desrespeitam a advocacia, afastam a essencialidade da profissão prevista na Constituição Federal, a dignidade da prestação jurisdicional e os direitos dos cidadãos".

Mas o impacto sistêmico é ainda mais grave.

A proliferação de ações mal elaboradas está criando uma sobrecarga artificial no Poder Judiciário, especialmente nos Juizados Especiais Cíveis, cuja missão é justamente promover celeridade e efetividade que essas "petições de balcão" destroem.

Paralelamente, as big techs enfrentam um cerco que intensifica esta guerra regulatória.

A Meta anunciou que manterá no Brasil seu programa de checagem de fatos, mas implementou sua controversa "Política de Conduta de Ódio", alegando buscar "maior espaço para a liberdade de expressão". A resposta foi imediata: a AGU expressou "grave preocupação", considerando as mudanças "terreno fértil para violação da legislação e preceitos constitucionais". O Ministério Público Federal oficiou a Meta exigindo esclarecimentos sobre se as novas regras de moderação dos Estados Unidos serão estendidas ao Brasil, temendo que alterações comprometam avanços já implementados em conformidade com recomendações do órgão.

No epicentro desta tormenta regulatória, o Supremo Tribunal Federal analisa casos que definirão o futuro da responsabilização digital. A AGU apresentou manifestação no Tema 987 solicitando que a tese de repercussão geral contemple expressamente conteúdos ilícitos produzidos ou impulsionados por inteligência artificial.

A argumentação é sustentada por dados que fazem qualquer especialista em tecnologia perder o sono: estudo do NetLab/UFRJ identificou 1.770 anúncios fraudulentos em plataformas da Meta apenas em janeiro de 2025, muitos usando IA para apropriar-se indevidamente da imagem de autoridades públicas. O Wall Street Journal revelou que 70% dos anunciantes recém-ativos na Meta promovem golpes, produtos ilegais ou de baixa qualidade.

O ministro Luís Roberto Barroso, em voto que pode determinar o futuro da moderação de conteúdo no país, defendeu posição intermediária: crimes contra a honra ainda exigiriam ordem judicial para remoção, mas outros crimes permitiriam notificação privada.

Sua preocupação reflete a complexidade do momento: "Se crimes contra a honra pudessem ser removidos apenas por notificação privada, a próxima vez que alguém dissesse que o governador é mentiroso ou medíocre, isso estaria sujeito à remoção pela plataforma, o que seria altamente limitador do debate público."

É o dilema de quem precisa equilibrar inovação tecnológica com proteção democrática, desenvolvimento econômico com direitos fundamentais.

Esta não é uma batalha acadêmica ou futurista. É uma guerra que acontece agora, com consequências que se materializam em salas de aula de Curitiba, tribunais do Rio de Janeiro e algoritmos que decidem o que meio bilhão de brasileiros veem diariamente em suas telas. A escolha que o país faz hoje entre regulamentação inteligente e laissez-faire digital determinará se a IA será ferramenta de democratização do conhecimento ou arma de manipulação em massa.

As iniciativas de Goiás e Paraná provam que é possível colher benefícios transformadores da IA com governança responsável. Simultaneamente, casos como petições de R$ 20 e fraudes publicitárias massivas demonstram que autorregulação de plataformas não funciona quando lucro privado prevalece sobre direitos constitucionais. O Brasil está literalmente escrevendo o manual de como democracias emergentes podem liderar a era da IA sem sacrificar valores fundamentais.

O futuro da inteligência artificial brasileira será definido nos próximos meses, numa disputa onde cada decisão judicial, cada lei estadual, cada política de moderação pode inclinar a balança entre progresso responsável e caos digital.

Nossa capacidade de criar marcos regulatórios sofisticados - que protejam sem sufocar, que regulem sem tolher - determinará se seremos exportadores de soluções para o mundo ou importadores de problemas que outros países já resolveram.

A história julgará se soubemos defender a IA dos oportunistas que ameaçam destruí-la antes mesmo que ela mostre todo seu potencial transformador. A tecnologia não é o problema; a ausência de regras inteligentes é. E o tempo para acertar está se esgotando rapidamente.

Leia mais conteúdos